segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Chico Buarque e Caymmi, saudade insuficiente e retorno desnecessário

Saudade, pelo menos a crônica, é sentimento que não se quer que morra. É uma espécie de dor mansa que mantém no espírito do saudoso a presença daquilo que, caso contrário, estaria perdido por completo. E, querida que é, a saudade se adorna com penduricalhos que a mantêm viva.
Ouvi de uma filha religiosa que, toda vez que sonhava com a mãe já morta, ajoelhava-se na cama e rezava para que os sonhos se repetissem sempre, apesar das lágrimas. Pendurava na sua saudade novas lembranças construídas nos sonhos.
Em dois momentos de grande talento, nossa música popular descreveu esse sentimento não agudo de perda. Em ambos o efeito é o mesmo, o saudoso não sai de onde está, mas suas causas são opostas. Em uma causa, a saudade é insuficiente e na outra o retorno é desnecessário.
Começando pela mais recente, na canção “Iracema” de Chico Buarque, a migrante clandestina, que liga a cobrar, que é anagrama de América, que foge da polícia, que não fala inglês e por isso namora um mímico – esbanjamento de inspiração – vai vivendo atrapalhada e “tem saudade do Ceará, mas não muita”.
“Tem saudade do Ceará”, pois é uma linda terra de sol, onde é querida pelas pessoas, onde se fala a língua que entende, onde não precisa fugir da imigração, onde estão sua infância e sua compreensão do mundo, mas onde sabe que também não há esperança de melhorar de vida.
“Mas não muita”, pois tudo o que espírito do Ceará lhe dá não basta para enfrentar tanta dificuldade material. O chamado do coração cearense leva sua alma de volta com freqüência, sobretudo nos momentos de solidão, mas é insuficiente para despregar seus pés do chão do lugar onde tem mais oportunidades. A troca de “insuficiente” por “muita” é só mais um exemplo do já conhecido traquejo do compositor com as palavras.
No outro momento da saudade na MPB o saudoso é o próprio compositor.
Em “Coqueiro de Itapuã”, Caymmi primeiro conclama um vento amigo, que dedilha cantigas nas folhas do coqueiral e que ondula as águas de sua terra, a compreender a dimensão de sua perda de exilado. Uma vez conquistado como cúmplice, cabe ao vento trazer boas notícias toda manhã e jogar “uma flor no colo de uma morena em Itapuã” – esbanjamento agora de erotismo.
Não pede ao vento, nem a qualquer orixá, que o leve de volta, mas apenas que garanta que as notícias sejam boas – ou, pelo menos, que só lhe conte as boas – e mantenha as mulheres com os colos receptivos às flores que caiam.
Pede à saudade que o deixe, mas ela não é dada a atender pedidos.
Assim, como na primeira canção, também tem saudade de sua terra, mas ela não é insuficiente para levá-lo de volta. Aqui é diferente. Fica onde está, pois evocar os penduricalhos que pôs na sua saudade faz desnecessário o retorno. Coisas de alguém que vive tudo de sua varanda, docemente embalado na rede, a quem bastam as imagens que criou, lembranças ou invenções de um lugar distante.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário