segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Noel, não 26, mas 60


I - O pulo do gato


Certa poesia mudou, mas letra de música ainda exige aquela paciência de artesão chinês para encaixar sílabas nas notas musicais e tônicas nas posições certas. Só memória de elefante para se lembrar de palavra que se caiba nesse cárcere tão justo sem ofender o conteúdo: “e acima da razão a rima / e acima da rima / a nota da canção”*.
Moço ainda, já que sempre foi moço (será?), Noel deve ter se aborrecido com tanta restrição. Fazia uma letra de amante abandonado e despeitado, queria fulminar com pragas terríveis e as notinhas teimavam em atravancar o legítimo fluxo da ira! ‘Ara, tenha paciência!’
Labutou um bocado até que sorriu com o próprio engenho. Sarcasmo de craque, já que sempre foi craque-veterano (mesmo!). Só chutava de rosca. ‘Fosse gago não teria tanta dificuldade’ e nasceu o “Gago apaixonado”**.
Golaço!
                           “mu-mu-mulher em mim fi-fizeste um estrago”
Com os dois primeiros “mu-” evitou um “cara” que não ficava mesmo bom. Com o “fi-” adicional fugiu do “tu” que também não combinava.
                          “Cara mulher em mim tu fizeste um estrago” (bem pior, não?)
Como dificuldade de gago não tem regra – nunca se sabe o número de sílabas acrescentadas – a liberdade foi completa e nasceu a canção genial. E, como a liberdade não morre cedo, não morreu no ato da composição e se soltaram também os intérpretes: cada cantor dobra ou triplica a sílaba que mais lhe convém, desde que elas sejam contadas e as tônicas postas nos seus devidos lugares.
Mas gato só pula bem porque tem bigodes longos, cultivados. Daí a teoria dos bigodes.

II - Os bigodes do gato 

Ele nasceria na Vila. E lá na Vila, todos sabem, os meninos já vêm gaiatos.
Diz a lenda de um samba inacabado, gênero que não tem compromisso algum com este tipo de verdade, que foi numa noite de outono, muito estrelada e enluarada. A cabrocha tinha as pernas abertas, não para o ato de amor, mas para o seu fato, quando viu, na mão do médico aflito, o grande instrumento brilhante.
Coisa estúpida nessas carnes de calor e sombras meter instrumento brilhante e frio. Mas havia que se catar a cabeça do gaiatinho que teimava em não passar.
Não era um bom dia para o doutor. Julgou em posição exata o aparelho e pressionou para afirmar os ferros. E, nos poucos segundos seguintes, toda uma vida se definiu.
Sentiu a primeira pressão um pouco à esquerda e o deslocamento do maxilar frágil. Pensou, no seu dialeto primeiro: “Esse não vai crescer bem, a boca da primeira moça vai ter de ser remunerada e nela hei de treinar molejos para compensar as más impressões das próximas”. Viveu, nesse primeiro instante, onze anos bem vividos.
Parasse ali a desventura e já não seria gaiato qualquer. Mas era osso tão molezinho que a mão do homem do outro lado não percebeu a resistência. Fez amassar toda a frente do queixo em direção ao pescoço. Aí a tristeza foi funda, mas sempre fina: “Resta-me comer de jeito feio. Ficam cancelados os jantares românticos e as luzes de velas. Não lhes vou cantarolar meus sambas nem vibrar os cristais dos vinhos. Terei de ser o amante sorrateiro, algo cínico, posseiro dos leitos alheios. Leitos de desavisados que julgam suficientes os parcos cuidados que destinam a carnes sempre tão insaciáveis”. E, nesse meio segundo, lá se foram outros nove anos, percorridos no coração pequenino e frenético do vilaense.
O último aperto durou um pouco mais e doeu sua primeira dor física. Quebrou de vez os ossos e fez morta e cremada a pequena esperança que tinha nas correções futuras da ciência médica. E doeu tão fundo, que seu cromossomo mais sarcástico teve de segurar pelos ombros o seu cromossomo mais lírico que queria meter, na vontade do menino, o suicídio para dali a pouco. Foram catorze anos nessa luta dos dois poderosos cromossomos Noelenses. Luta de titãs, da qual, pela força, não haveria vencedor. E não houve. Mas o lírico deu de ombros e se recolheu na solidão com um imenso tanto faz. O adversário amigo piscou-lhe cumplicidade e grudou-se nas vontades do menino que lhe entregou, naquele momento, a alma ferida: “Dessa massa toda quebrada há de se formar boca muito melhor ajustada às coxas das passistas. Terei trabalho para convencê-las de que beleza aqui não verão. Mas vai ser tal o idílio que lhes incutirei pelos grotões, que minha fama vai correr a noite e toda mulher do Rio de Janeiro quererá ter em mim o amante secreto”.
Se somarmos os onze, os nove e os catorze anos dos três momentos do fórceps que deu Noel Rosa à lua, tudo se explica. Nasceu com trinta e quatro! Nos vinte e seis com que nos presenteou, foi parceiro gaiato do cromossomo sarcástico e do cromossomo lírico. Fez canções de humor refinado e de tristeza sem excesso. E não podia - nem nós merecíamos - passar mais tempo conosco.
Foi embora, na verdade, aos sessenta.
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(*) Festa Imodesta, de Caetano Veloso
(**) O Gago Apaixonado, de Noel Rosa

Saudosa Maloca e Minha história

Os dois são artistas realmente populares.

"Saudosa maloca" (*) e "Minha história" (**) começam do mesmo jeito:

               "se o senhor não ta lembrado / dá licença de contá" 

                                e

                "seu moço qué sabê / eu vou contá num baião"

Na Saudosa Maloca o narrador não é o próprio Adoniran, mas um dos despejados do trio feito do revolucionário (que grita), do legalista (os home tão com a razão) e do religioso (o frio conforme o cobertor). 

Na Minha História é o João que fala da própria infância de vender pirulito, mas pra lembrar a dos outros realmente desprovidos (mas o negócio não é bem eu, é mané, pedro e romão, que também foi meus colega e continua no sertão, não pudero estudá e nem sabe faze baião).


Alguém devia cantar uma coladinha na outra. Voto no Paulinho da Viola. Quem sabe trançando os versos das duas no final. Pra isso servem os intérpretes.

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(*) Saudosa Maloca - Adoniran Barbosa

(**) Minha História - Raimundo Evangelista e João do Vale 

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Paulo Vanzolini e o que a música lhe deu

Paulo Vanzolini é um compositor de amigos.
Fui até sua casa de vila por uma consulta ao zoólogo para um livro de fotos sobre a Universidade. Tinha me dito, telegráfico, que sobre o assunto do livro não tinha como ajudar. “Venha quando quiser, mas sobre isso não tenho contribuição, meu trabalho é diferente”. Ele ainda ignorava que minha razão maior era o encantamento pela sua música, a caixinhaAcerto de Contas”, cujas letras sabia de cor. Receberam-me, ele e a Ana Bernardo, a ótima intérprete de “Seu Barbosa”, com café e água. Achei que cerveja seria mais adequado, mas fui protocolar e envergonhado e não sugeri.
No caminho, ouvindo MP3 no carro, tinha listado meus sambas favoritos e marcado aqueles sobre os quais gostaria de esclarecer um ou outro ponto pra mim obscuro na letra. Uma grande lista, “grande demais”, pensei, não contava falar de tudo. Falamos sobre muito mais. Recebeu-me por uma hora. Meio tímido, fui eu que dei o final do encontro, pois não vi um único sinal de impaciência.
Disse-lhe, de cara, que o punha na primeira fila dos grandes compositores nacionais, pelas ótimas músicas e, principalmente, pelo coloquial, pelo humor das letras (nunca triviais, muitas vezes doloridas) e pelas mulheres, nelas tratadas sem adulação.
Paulo Vanzolini não adula as mulheres quando fala de amor, defeito de muitos compositores brasileiros, esses verdadeiramente machistas.
E Paulo não se quer adulado. Baixou os olhos toda vez em que elogiei sua obra. Dizem (parece que os orientais) que não se deve responder aos elogios. Paulo não responde, olha o chão de seu interior. Chão que ele e o Adoniran traduziram à perfeição.
Para não deixar cair a peteca, espiei minha lista de músicas e fui perguntando. Tentando encadear para não transformar o encontro em interrogatório policial.
Sobre o “Cuitelinho”, disse que Paulo Xandó, amigo de viagens, a mostrou para ele, cantada por um barqueiro. Eles a recolheram. Houve uma injustiça no registro da música, que corrigiu. Perguntei se tinha mexido na letra e me contou que alguns versos eram quebrados, mal recordados pelo barqueiro, e os ajeitou.
No encontro confirmei uma desconfiança que tem me acompanhado por anos: a estrofe “A tua saudade corta / como aço de navaia / o coração fica aflito / bate uma a outra faia, / os zóio se enche dágua / que até a vista se atrapaia” foi Vanzolini quem escreveu. Eu me empolguei: “ ‘bate uma a outra faia’ , Paulo,  é um dos meus versos favoritos na MPB”.
“É verso de médico”, riu. “Os cardiologistas gostam”.
tinha valido a viagem. O enigma do Cuitelinho estava resolvido, mas muito viria ainda. Quando havia silêncio, às vezes eu tentava falar sobre o trabalho para a Universidade, afinal era pra isso que tinha ido até .
- A Universidade não é fácil.
E voltávamos ao samba.
- A música me deu muita satisfação.
Li na lista Amor de trapo e farrapo e lhe disse ser música que eu e minha mulher ríamos juntos: éramos nós. E ficamos nos sambas sobre as mulheres. Contei também, ia mais íntimo, que, diante de alguns versos, minha mulher se espantava, por masculinos demais. Apenas sorriu, sorri também, conversa de homem, de salão.
Quem é Irede, Paulo?” (da músicaTrato do homem - “Diga Irede o que quiser / o que mais enfeita a mulher / ainda é o trato do homem”). “É minha amiga Irede Cardoso, lembra dela, a vereadora feminista?, que botei , provocação”. Falei-lhe que a idéia de que o amor embeleza a mulher tinha sido usada pelo Chico Buarque, emAnos Dourados”, com o Tom (“no nosso retrato / pareço tão linda”), e arrisquei quemuita influência da música de Paulo na do Chico.
Recusou fortemente. “De jeito nenhum! O Chico tinha dezoito e me mostrou ‘Pedro Pedreiro, dezoito!, uma música perfeita, nem sabia que ele fazia sambas e me mostrou aquilo pronto”. “Você não sabia, mas vai ver que ele te ouvia”, eu disse. “De jeito nenhum”. Fim de papo.
“Paulo, até onde eu sei, você, o Noel e o Chico com o Edu fizeram músicas sobre leilão. Três lindas músicas”. “O Chico tem uma? Não conheço”.
Pra mim, a sua é a melhor”.
“ ‘Leilão, era a preferida do Luiz Carlos Paraná. O Paraná morreu com cirrose sem nunca ter bebido, decorrência de hepatite infantil. Eu estava com ele no momento.”
Amigo perdido.
Elogiei “Napoleão” (“pondo a modéstia de parte / é Napoleão Bonaparte e eu / que sabemos na verdade / o quanto dói uma saudade”). olhou pra baixo, manteve a modéstia.
- A música me deu muita alegria.
Citando o Luiz Gonzaga Neto, amigo, esse meu, que me acompanha no entusiasmo diante de “Longe de casa eu choro / e não quero nada”, eu lhe disse que é música de amor a São Paulo, sem aquelas críticas que sempre permeiam as letras sobre a cidade. “Fiz essa letra quando estudava nos Estados Unidos. Saía pela rua, chorava muito e pensava ‘o que estou fazendo aqui, longe de São Paulo?’ ”. Elogiou o Gudin, parceiro genial que botou música nessa letra, e o Paulinho Nogueira, parceiro em outras.
Seu Barbosa” foi encomendada pelo Paraná, que ia dar uma medalha, no Jogral, ao Adoniran. Encomendou um samba que falasse dele e que fosse à sua moda. Música de amigo.
Capoeira do Arnaldo” foi provocação do Arnaldo Pedroso d’ Horta, “você se diz compositor e não tem nenhuma capoeira”. “No dia seguinte mostrei essa”. Música de amigo.
Peça de Albene” é sobre uma mulher que ia ao bar de calcinha e sutiã, apenas enrolada em um pano, preso com alfinetes (“quem põe a mão se cutuca” – genial interpretação da Pii). “ tinha um livro: a Enciclopédia Britânica”. Música de amigo.
Samba Abstratomostrou também para ao d’ Horta, ainda sem título, e, no dia seguinte, estava no Jornal da Tarde, batizada. Música reconhecida por amigo.
Falou de parceiros mais uma vez. “É difícil achar parceiros”. Amigos parceiros, uma ou outra mágoa. Elogiei de novo: “seus sambas são variados, tem à moda do Adoniran, uns ficam bem na voz do Paulinho da Viola, outros na voz do Chico, ou na do Carlinhos Vergueiro, porque são sambas pra eles, mesmo que isso não fosse deliberado”.
“O Paulinho da Viola sempre me pede que ponha letras nas músicas dele, mas não sei fazer música por encomenda”.
Não faço mais músicas. A última foi ‘quando eu for, eu vou sem pena / pena vai ter quem ficar’. Eu fiz quando estava sozinho numa fazenda, tava sozinho e fiz.”
Eu te disse e repito, você, pra mim, está entre os grandes da MPB”.
Nada, fiz pouca música. Pra completar a caixinhaAcerto de Contas’ foi difícil. Alguma coisa eu esqueci, mas não é importante ter esquecido”. “O Caymmi também fez poucas, isso não importa”, respondi. “Fez mais do que eu”. “Um pouco mais, mas não importa”, insisti.
Um grande cara o Caymmi, bom amigo. Divertido. Compositor magnífico. Uma vez o encontrei num lugarejo de meio de mato sentado numa soleira tocando violão”.
Contei-lhe que Volta por cima é música que me tocou, muito menino ainda, sem saber por quê. Lembrança definitiva de infância como o gosto de pizza, por causa do azeite, que não tinha na minha casa; como o cheiro da cama de meus pais, quando me recebiam entre eles de manhã; como a primeira visão do santuário de Congonhas do Campo; como o toque na primeira cintura de moça, no bailinho de garagem, em Jundiaí.
Disse que não consegue traduzir Volta por cima para o inglês. “Você criou uma expressão”.
Olhos baixos.
Explicou queAcerto de Contastinha esse nome por acertar as contas com os músicos que sempre tocaram com ele. Coisa de amigo. Falei que, se era por isso, tinha dois sentidos, pois também era um acerto de contas da MPB com o grande compositor que ele é e, com essa caixinha de quatro CD’s, agora se conhece melhor.
De Ronda não falei. Não gosto de Ronda. E nem de “Sampa”.
Paulo Vanzolini é homem de amigos. Nem me conhecia e me recebeu como amigo.

Samba Abstrato
Calado eu luto,
Sereno e resoluto,
Mas de minuto em minuto,
Sinto que a força se esvai.
Eu me mantenho e sustento,
Da fibra e do pensamento,
Mas, de momento em momento,
A resistência descai.
Respiro fundo,
Pois, de segundo em segundo,
Mais cresce o peso do mundo.
Jesus Cristo sendo o Pai.
Resisto, porém não sei até quando
No fim acabo ajoelhando,
Mas a coragem não cai.

Mas ninguém pense
Que não estou muito consciente
De que fundamentalmente
Não existe diferença
Entre morrer pela crença
E ser igual a toda gente.
É tudo um sonho, tudo uma sombra, uma ideia,
Autor, ator e plateia,
Espero que o pano caia
Pra sair batendo palma
Ou romper na maior vaia,
Ou dizer muito ao contrário
Que espetáculo tão frouxo
Nem merece comentário.


Teima quem quer
Que teimosia,
Nada nos une e tudo nos separa
quando a vida pára
E o tempo se distrai
No momento que vai
Do grito ouvido ao vidro estilhaçado
É que eu paro ao teu lado,
E nós trocamos vidas perdidas por horas roubadas.

Teima quem quer.

Deixa disso mulher.
A sorte nãopra todos
Mas não escolhe a quem falta.
De um lado tem maré alta,
Do outro, praia de fora.
Quem não tem juízo é que chora,
Quem tem é que não se toca,
Deus sabe o dia e a hora,
Aperta, mas não sufoca.
Entre o grito e o estilhaço
Cabe outra vida na vida
Todo um mundo entre meus braços.
Teima, sim quem quer.
Deixa disso, mulher.


Adoniran

Antes de mais nada, é um dos maiores letristas da Música Popular, o que no Brasil não quer dizer pouco.

Mas algumas análises sobre a obra do Rubinato incomodam.

Identificar Édipo em "Trem das Onze" é tão tolo, que basta dizer isso."Trem das Onze" é uma das canções que mais brasileiros sabem de cor. Em qualquer lugar que você esteja, todo mundo canta. Ara, quem não  tem momentos de amor prejudicados pelas obrigações do dia-a-dia?

Há outra análise, menos estreita, que também não compartilho: de que há legalismo no Adoniran.

O conformismo que às vezes vemos nos muitos personagens que ele cria não é legalismo, mas um certo realismo. Assim como o desprovido tem que se conformar com o raio que cai na sua casa em noite de tempestade, ele também se conforma com a pata cruel do estado e da sociedade que derruba seu barraco.

"oh oh oh oh oh meu senhor / é uma ordem superior" (*)

A relativização do direito de propriedade é recente e ainda insuficiente. A injustiça da ordem superior, baseada em conceito estreito de propriedade, é raio estatal que destrói a vida do desprovido.

Na definitiva "Saudosa Maloca", esse realismo é mostrado pela composição dos três personagens. Nela sim tem um legalista, simplista, "os home ta com a razão"; mas tem também um revolucionário, que quer gritar; e um religioso, que é a última palavra, "Deus dá o frio conforme o cobertor". E, nessa última palavra de fé, está a grande construção do realismo do Adoniran: pra maioria dos ferrados a religião é só o que resta.

João Rubinato não faz a música do "dever ser", mas a do "ser". Nos nossos dias, talvez Adoniran contasse sobre os movimentos sociais que existem e obtêm avanços. Seria bom tê-lo hoje como compositor.

(**)

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(*) Despejo na favela

(**) João Rubinato é o nome de Adoniran Barbosa. Uso pra evitar a repetição, truque estreito de escrevinhador barato.

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Chico Buarque e Caymmi, saudade insuficiente e retorno desnecessário

Saudade, pelo menos a crônica, é sentimento que não se quer que morra. É uma espécie de dor mansa que mantém no espírito do saudoso a presença daquilo que, caso contrário, estaria perdido por completo. E, querida que é, a saudade se adorna com penduricalhos que a mantêm viva.
Ouvi de uma filha religiosa que, toda vez que sonhava com a mãe já morta, ajoelhava-se na cama e rezava para que os sonhos se repetissem sempre, apesar das lágrimas. Pendurava na sua saudade novas lembranças construídas nos sonhos.
Em dois momentos de grande talento, nossa música popular descreveu esse sentimento não agudo de perda. Em ambos o efeito é o mesmo, o saudoso não sai de onde está, mas suas causas são opostas. Em uma causa, a saudade é insuficiente e na outra o retorno é desnecessário.
Começando pela mais recente, na canção “Iracema” de Chico Buarque, a migrante clandestina, que liga a cobrar, que é anagrama de América, que foge da polícia, que não fala inglês e por isso namora um mímico – esbanjamento de inspiração – vai vivendo atrapalhada e “tem saudade do Ceará, mas não muita”.
“Tem saudade do Ceará”, pois é uma linda terra de sol, onde é querida pelas pessoas, onde se fala a língua que entende, onde não precisa fugir da imigração, onde estão sua infância e sua compreensão do mundo, mas onde sabe que também não há esperança de melhorar de vida.
“Mas não muita”, pois tudo o que espírito do Ceará lhe dá não basta para enfrentar tanta dificuldade material. O chamado do coração cearense leva sua alma de volta com freqüência, sobretudo nos momentos de solidão, mas é insuficiente para despregar seus pés do chão do lugar onde tem mais oportunidades. A troca de “insuficiente” por “muita” é só mais um exemplo do já conhecido traquejo do compositor com as palavras.
No outro momento da saudade na MPB o saudoso é o próprio compositor.
Em “Coqueiro de Itapuã”, Caymmi primeiro conclama um vento amigo, que dedilha cantigas nas folhas do coqueiral e que ondula as águas de sua terra, a compreender a dimensão de sua perda de exilado. Uma vez conquistado como cúmplice, cabe ao vento trazer boas notícias toda manhã e jogar “uma flor no colo de uma morena em Itapuã” – esbanjamento agora de erotismo.
Não pede ao vento, nem a qualquer orixá, que o leve de volta, mas apenas que garanta que as notícias sejam boas – ou, pelo menos, que só lhe conte as boas – e mantenha as mulheres com os colos receptivos às flores que caiam.
Pede à saudade que o deixe, mas ela não é dada a atender pedidos.
Assim, como na primeira canção, também tem saudade de sua terra, mas ela não é insuficiente para levá-lo de volta. Aqui é diferente. Fica onde está, pois evocar os penduricalhos que pôs na sua saudade faz desnecessário o retorno. Coisas de alguém que vive tudo de sua varanda, docemente embalado na rede, a quem bastam as imagens que criou, lembranças ou invenções de um lugar distante.
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Paulo Vanzolini, o ótimo mau cantor

De memória prodigiosa, capaz de cantar de cor a infinda letra de Alberto, Paulo Vanzolini, sempre que chamado a cantar, se desculpa e logo devolve o microfone aos cantores, “chega de amador, melhor deixar com os profissionais”.
Enérgico, provavelmente não concordaria com uma única sílaba do aqui escrito, mas é ótimo exemplo do curioso fenômeno que faz, dos compositores da música popular, cantores tão saborosos.
A classificação de compositor costuma tirar a carteirinha de cantor de grandes nomes dos discos, inclusive os de excelente material vocal como Caetano Veloso, João Bosco, João Nogueira, Luis Melodia e Paulinho da Viola, no Brasil, e, fora daqui, Tom Waits, Paul McCartney e tantos outros.
Com certeza, na MPB, os discos que mais ouço são os dos compositores. E os que menos envelhecem.
disseram que isso é consequência da compreensão que o autor tem da própria obra, que o faria tratá-la com maior intimidade que outros que dela se aproximassem. Não busco razões para explicar as coisas da arte, elas são sempre muito insuficientes, mas essa afirmação corresponderia a dizer que somente os pais compreendem bem os filhos.
E, ainda que se acredite que a proximidade da criação da música incremente intimidade da voz às voltas com as notas musicais, essa tese não explica por que Nervos de Aço, do Lupcínio, quase que pertence ao Paulinho da Viola; “O Gago Apaixonado”, do Noel, ao João Bosco; ou as hispano-americanas do Fina Estampa”, ao Caetano Veloso, para ficar apenas nos exemplos das grandes vozes que também compõem.
Em resumo, os compositores brasileiros são ótimos intérpretes também das músicas compostas por outros.
Também os de vozes menos afortunadas não fogem a esta regra. Sem Compromisso, do Geraldo Pereira, parece feita para a voz do Chico, que ainda lhe criou uma irmã, menorzinha, mas linda, “Deixe a menina
E não é diferente no caso do Vanzolini. Não tenho informações de que tenha cantado músicas de outros, mas é ótimo intérprete das suas próprias. E elas precisam de intérpretes de peso, porque suas letras não são pra qualquer um.
Um bom exemplo é sua interpretação da bem-humorada Amor de Trapo e Farrapo (*). É amor de “Injuriado” (**), amor entre tapas e beijos.
A peleja amorosa vai se desenvolvendo, deságua no amor ciúme fogo nos olhos / beijo fogo na boca e, nesse ponto, o Paulo nos manda uma interpretação bem temperada e engrandecedora, no disco “Paulo Vanzolini por ele mesmo”, de 1981:
“e o coração,
incêndio pleeeeeno
amor sereeeeno
amor pirraaaaça
amor veneeeeno
amor cachaaaça”

Seu modo de cantar funciona como o de um professor que enumera as formas insanas desse amor passional. Muito diferente das interpretações de outros cantores (e mesmo da do coro que o sucede nessa versão) essa passagem de “e o coração para incêndio pleeeeeno” como que diz: “o que se há de fazer? o coração é o que é! é todo esse rol com que a gente tem que se deliciar e conformar”.
Sem falar que “pleeeeeno” com “e” comprido fica mais pleno.
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(*) Amor de trapo e farrapo / Todo errado, mas tão gostoso / De dar arrepio na espinha / Amor de galo de rinha / Amor de arranca-toco / Amor de louco contra louca / Ciúme, fogo nos olhos / Beijo, fogo na boca
E o coração, / Incêndio pleno / Amor sereno/ Amor pirraça / Amor veneno / Amor cachaça
Amor debaixo dágua / Amor no meio dos infernos / Amor de meter susto ao padre eterno / E ja se vê / Só pode ser amor de eu e você 

(**) “Injuriado” – Chico Buarque